A ética da psicanálise e a questão do suicídio

Marcos Donizetti
4 min readAug 27, 2022

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Lacan era criticado pelo suposto alto índice de suicídios em sua clínica, mas isso acontecia principalmente porque ele bancava recebê-los, bancava oferecer escuta aos que já aparentemente não tinham esperanças.
Durante um período, soube que entre alguns colegas e professores dos tempos de graduação instalou-se o hábito de mandar para mim os casos de ditos “suicidas”, e isso sempre foi um desafio em minha prática clínica.
Na primeira vez em que identifiquei esse risco num caso considerado grave eu levei a questão para supervisão e fiquei desnorteado com a resposta do supervisor: “sua função como analista é salvá-lo?”

Para continuar, é importante que alguns pontos fiquem claros: primeiramente, em termos éticos a função de um analista é a de apostar no sujeito. Sujeito do inconsciente, sujeito do desejo, sujeito. E o que é sujeito? Grosso modo e simplificando, é aquele que decide. Em segundo lugar, Nietzsche e Schopenhauer abordam a questão do suicídio lindamente. Talvez Nietzsche tenha evitado o meu próprio suicídio há muitos anos, quando meu analista na época o sacou da cartola numa sessão em que eu já havia desistido, com uma frase apenas, que cito livremente: “A ideia do suicídio ajuda a suportar muitas noites ruins”. E ali minha posição de desistência da vida mudou.

Mas há um autor que acredito postular algo que orna muito melhor com a ética psicanalítica de que falo: Camus. Em seu “Mito de Sísifo” ele propõe o suicídio como a maior de todas as questões existenciais e filosóficas. Resumidamente, é possível inferir que se a vida tiver valor absoluto e inquestionável (significante vazio), se for missão ou dom divino, ela deixa de ser dádiva e se torna prisão. O sujeito só pode efetivamente optar pela vida quando pode questionar-se a respeito de seu sentido e de que valor ele poderá atribuir ao viver.
Não podemos desconsiderar a influência de n possíveis transtornos e condições psicológicas que influenciam a tomada de decisão de quem pensa em morrer, mas o fato é que confrontar a pessoa com o “valor absoluto e inquestionável da vida” só transforma seu sofrer num tabu, só lhe retira a voz e o enche de culpa.
De fato, o suicida é socialmente assujeitado, porque construímos nossa sociedade em torno de um significante que não permite variações em seu sentido, seja por questões religiosas ou outras. Mas um psicanalista não pode assujeitar. Existem outras abordagens e posturas éticas possíveis, mas o psicanalista trabalha apostando radicalmente no sujeito. Se “salvar esse paciente”, por exemplo adotando o referencial da ética médica, se torna o objetivo, talvez não exista mais espaço para esse sujeito sequer dizer de si, e um suicida precisa ser ouvido, precisa falar e elaborar essa dor e sua angústia. A sensação da necessidade de partir é frequentemente desejo de mudança que demanda elaboração. Talvez não seja por acaso que o arquétipo da morte no tarô tenha esse significado.
Eu sei que parece paradoxal, mas eu apenas sou capaz de oferecer essa escuta e estar com esse sujeito no doloroso processo de elaboração e significação da vida se consigo colocar meus valores e questões morais entre parênteses e fora da cena. Antes de precisar viver ele precisa dizer, e eu preciso estar presente para ouvi-lo sem julgamentos.

Em consultório durante 11 anos tive algumas dezenas de “casos graves”. Por conta dessa aposta no sujeito e na elaboração e no vínculo e na confidencialidade e pela oportunidade de falar eles seguem entre nós. Muito frequentemente o que era desejo de morte pôde ser operado como semente de uma mudança. O manejo da angústia aí é difícil e absolutamente desafiador. Num determinado momento a pessoa liga tarde da noite dizendo “vou me matar agora” e se você não diz “ok, nos falamos segunda” ela correrá paradoxalmente mais riscos. Em outras situações pode ser necessário dizer “fique aqui comigo e diga do que sente”. É caso a caso, e só a partir do diagnóstico e da direção do tratamento podemos fundamentar tais decisões. Não é um jogo, e Deus sabe como é levar isso para a própria análise depois.

Atuando num CAPS “eu perdi” um desses pacientes. O moço procurou o atendimento, fez a triagem e não foi possível identificar o risco naquele momento, ele marcou o início das atividades para a próxima semana e foi encontrado morto no fim de semana. Infelizmente os motivos de um suicida morrem com ele. Parte do trabalho então foi lidar com o baque na equipe.
Há dias que eu ainda não durmo. Me dói na carne a lembrança daquela morte. Fico pensando o que poderia ter feito para evitar esse final trágico, mas a resposta é nada. Nem sempre conseguimos. O cidadão aqui acredita na vida e quer salvar pessoas, essa é minha moral individual. Já o psicólogo de orientação psicanalítica precisou entender que o desejo de ouvir precisa ser maior que o de “salvar”. Se meus valores interferem, entram no consultório comigo, é aí que ninguém se salva. E não é tão simples quando você tem que decidir rápido. Não posso e não vou julgar todos que optariam pela tentativa compulsória de salvar o suicida via internação, por exemplo, são outros os referenciais, mas a aposta da Psicanálise precisa ser outra, senão ela nem precisa existir.

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Marcos Donizetti

Psicólogo paulistano. Fã de Leminski, de Ali e do Superman. Filho de Ogum e do Pós-estruturalismo. https://marcosdonizetti.substack.com/