Jogos e violência

Marcos Donizetti
3 min readMar 14, 2019

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Apontar games como causa ou grandes influenciadores em casos como esse do Massacre de Suzano é uma solução rápida, daquelas que precisamos em momentos de grande mobilização. A explicação e a nomeação das coisas oferece um alívio imediato diante do profundo desamparo que esse acontecimento causa e dos questionamentos que se impõe, mas é uma saída simplória. O objeto em si (produto da cultura pop, por exemplo) não é sem uma relação constituída com ele, e essa relação será ímpar e diferente como são os sujeitos dotados de agência. A violência representada e mediada pela arte não é nada a priori, há inclusive a possibilidade de que seja vivenciada de forma catártica sem maiores prejuízos. Ocorre que o que está na arte está na sociedade. A arte é representação do momento em que foi criada, e aí está o sintoma maior. Não é a influência do game, mas a necessidade de entendermos como as comunidades, sei lá, gamers e nerds, de quadrinhos, foram muito rapidamente sequestradas por outros n discursos bastante nocivos. Não que comics ou games não possam ter discursos problemáticos, mas acredito que esses objetos sejam apenas aglutinadores de fenômenos grupais, facilmente substituíveis se necessário, como torcidas organizadas, por exemplo, onde a bandeira e as cores do clube são fatores muito menores em relação às dinâmicas do grupo.
Há a hipótese de fácil adesão de que o conteúdo violento de alguns games implicaria uma espécie de gatilho para pessoas já doentes ou, pior ainda, que as faria doentes. Não poderia discordar mais, já que que circunscrever e nomear os criminosos da vez como doentes ou “monstros” incorre no erro de apostar na fantasia de uma sociedade relativamente estável onde casos como esse não seriam nada mais que uma anomalia específica e destoante, uma demarcação do nós (os normais) x eles (os monstros). É a aposta conservadora. Uma aposta no recalque, no culpar o pontual como racionalização que esconde o sintoma mais amplo. A patologia que leva ao ato extremo desses jovens é nossa enquanto sociedade, e eles não são casos isolados, mesmo que a passagem ao ato possa ser (é cada vez menos). De fato, este jovem que agora aparece em discursos como aquele que precisa ser protegido da má influência dos jogos de tiro em geral sabe separar muito bem o que se pode chamar de realidade da fantasia mediada e controlada nos meios eletrônicos, demandando apenas boa supervisão e presença de quem possa ajudar a delimitar aquilo como a fantasia que é. O que vem prejudicando essa separação é que o discurso de ódio, violência e ataque aos diferentes está cada vez mais naturalizado e intensificado, desafiando os laços constituídos por um anteriormente mínimo pacto social e institucional. Durante a campanha presidencial vimos o candidato eleito ensinando a crianças o sinal da “arminha” símbolo de sua bandeira de campanha. O mesmo candidato deu declarações sobre “metralhar” adversários e esse culto a símbolos de violência apareceu e aparece em fotos suas e de seus filhos, e apoiadores reproduziram essa simbologia. Não é um jogo, é o noticiário político. Ocorre que então a violência não é mais mediada ali pela fantasia do jogo, quadrinho ou livro, e não pode mais ser elaborada de forma relativamente segura. Essa violência agora permeia as relações, é mitificada e desejável, compartilhada e estimulada. O digital contribuiu e contribui para que pessoas que pregam o ódio, a violência e a misoginia, bem como o culto a símbolos da masculinidade tóxica, se encontrem e se articulem. É um fenômeno de grupo, horizontal, bastante amplificado pela facilidade de comunicação e totalmente validado no que eu chamaria de um eixo vertical, o das figuras de autoridade políticas, religiosas, familiares etc. É disso que precisamos falar, é esse o problema a ser atacado. Poderíamos proibir totalmente games e filmes violentos, mas seria recalque, diversionismo e solução parcial, e nessas horas é importante lembrar que o recalcado e não elaborado sempre volta.

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Marcos Donizetti

Psicólogo paulistano. Fã de Leminski, de Ali e do Superman. Filho de Ogum e do Pós-estruturalismo. https://marcosdonizetti.substack.com/